domingo, 6 de fevereiro de 2011

O mito ninja das caldas

"Isto passou-se há muitos anos, quando entrei para o Ensino Superior pela primeira vez. A entrada para o ensino superior é uma altura muito crítica na vida do jovem adulto, em que tudo é novidade, e há um montão de pessoas diferentes para conhecer, e segredos para partilhar. No meu ano de caloiro foi-me partilhado um segredo muito bem guardado: um apartamento a cair de velho, por cima de um café frequentado por toda a escória de Leiria, onde as cenas de pancadaria se sucediam todos os dias. A renda era extremamente barata e a sala era suficientemente grande para poderem pernoitar simultaneamente 10 pessoas ao mesmo tempo, fora todas as outras espalhadas pelos quartos. Além disso, a casa ficava muito bem localizada, perto da escola e dos bares.

Naturalmente, a casa do Colonial, como ficou baptizada, passou a ser o ponto de encontro de todos os meus amigos, conhecidos e mesmo pessoas com quem tivesse trocado um "olá" um dia. Numa altura em que o conceito de privacidade era uma miragem na minha própria casa, não era invulgar chegar à sala e deparar-me com cenas de sexo entre pessoas que desconhecia totalmente, e cheguei ao cúmulo de mandar embora uns 4 ou 5 marmelos que nunca tinha visto na vida, quando os mesmos me tocam à campainha com uma pizza e 3 garrafas de cerveja nas mãos... Bons tempos...


Isto passou-se mais ou menos entre 1999-2000, altura da criação do
Ninja das Caldas. Na altura, sentado no chão da sala, um amigo dum amigo dum amigo dum amigo dum amigo que por acaso se encontrava por ali falava com muito entusiasmo sobre um filme que uns tipos da ESTGAD (entretanto a escola passou a chamar-se ESAD) tinham feito. Falava de como o filme era mau, do sangue falso, dos ninjas, das Caldas, da impossibilidade de o encontrar... Chegava ao ponto de declamar diálogos do filme com o mesmo entusiasmo dos personagens. Era bom demais para ser verdade. Não podia existir um filme assim. O Ninja das Caldas? Tinha de o ver!

Por muitos e bons anos o procurei. Mais pessoas me confirmaram a existência do Ninja das Caldas, muitos sabiam de cor as falas, e duas ou três já haviam visto o filme. Mas ninguém tinha a cassete, e a Internet não era o que é hoje em dia. Fui desistindo da ideia de algum dia poder visionar o Ninja das Caldas, até que, alguns anos depois, a Sic Radical o passou na televisão para delírio completo de todos os habitantes da casa do Colonial! E era ainda melhor do que alguma vez havia imaginado!

A história começa no lar de uma dona de casa muito prendada, que trauteia uma conhecida modinha de Emmanuel enquanto trata das suas tarefas domésticas e aguarda que o seu amado Tony regresse de um torneio de artes marciais. A sua paz é abalada com a chegada de Evil Dragon, disfarçado de pregador das testemunhas de Jeová.

Evil Dragon, o chefe dos ninjas maus, espanca brutal e desnecessariamente a dona de casa, roubando-lhe o mítico búzio dourado. Entretanto, Tony regressa, e depara-se com um cenário Dantesco: casa destruída, sangue pelos ladrilhos e a sua amada prestes a falecer. Tony jura vingança contra as forças do Dragão, mas é derrotado e morto por Evil Dragon. No entanto, o seu mestre predispõe-se a utilizar os seus poderes para o trazer de volta à terra e treiná-lo com o intuito de eliminar de uma vez por todos os terríveis ninjas assassinos que assolam a região Oeste, e colocar um fim às intenções demoníacas de Evil Dragon.

O Ninja das Caldas é um mimo da boa série-B. Os diálogos são patetas, e por isso mesmo, memoráveis, os actores desdobram-se em vários papéis e as falhas na realização sucedem-se a um ritmo ainda mais alucinante que a banda sonora, composta por um Techno Carrinhos-de-Choque. A cena da ressuscitação de Tony é curiosamente feita debaixo de um pinheiro. O mestre ajoelha-se, reza um pouco, um pó branco cai do céu, seguido de Tony, seguido do saco do pó branco que entretanto havia ficado vazio. Antes, numa intensa luta contra Evil Dragon, Tony consegue efectuar uma esparregata e esmurrar o seu inimigo nas partes baixas, enquanto um grupo de militares passa em segundo plano efectuando o seu jogging matinal. Noutra cena, bem mais adiante, Tony lança um feroz ataque final contra o seu inimigo, projectando-se em voo durante vários metros em direcção ao peito de Evil Dragon. Bem visível na cena está a equipa técnica, suspendendo Tony pelo ar para simular o efeito voador.

Filmado com um orçamento de 40 euros (quatro contos de reis na altura), é fácil de ver onde foi gasto o dinheiro desta obra. Litros de Ketchup, um passeio de barco no jardim das Caldas da Rainha, e um ou outro saco de farinha. Todos os restantes adereços devem ter sido trazidos de casa (nota-se que por aqui existem alguns ninjas com técnica em artes marciais, pelo que as matracas e espadas devem ter vindo daí) ou encontrados nos próprios cenários (as caixas de papelão que constituem os "Robótes" de Evil Dragon e os tacos de bilhar e peças de xadrez letais do Ninja-Bar). Desengane-se que este filme tivesse alguma pretensão a obra prima, pois tudo em o Ninja das Caldas é tão mau que só pode ter sido propositado.
A edição em DVD encontra-se com muita dificuldade (mas encontra-se), pelo que podem tentar a vossa sorte nas bem-aventuradas superfícies comerciais de origem Francesa com nome de ar condicionado. No DVD existem uma panóplia de extras, como documentários, making of, entrevistas com as estrelas do Ninja das Caldas e mais uma ou outra coisinha. Se vale a pena comprar o Ninja das Caldas? Claro que sim! O Ninja das Caldas é simultaneamente o primeiro filme Ninja Português, a primeira produção nacional de série-B a receber um considerável tempo de antena e um marco no cinema nacional pelo fenómeno de passa-palavra ao qual foi sujeito. Filme de culto é isto!"


Desconheço o autor.

Viva o mito ninja das caldas!


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